terça-feira, dezembro 27, 2005

O legado francês no futebol

O futebol francês sempre foi visto com certa desconfiança. Afinal, a segunda nação mais rica da Europa (considerando que, no futebol, o Reino Unido é separado em quatro partes) nunca conseguiu ter um desempenho proporcional ao seu potencial. Sua liga é ofuscada pela dos vizinhos ingleses, italianos e espanhóis, os clubes gauleses só conquistaram duas vezes um torneio continental importante e a seleção vive de fases, sem se consolidar em longo prazo como uma potência. Mesmo assim, o mundo do futebol deve muito aos franceses. Afinal, eles foram os primeiros a ver o esporte de maneira global.

Basta ver que os três torneios mais importantes do planeta – a Copa do Mundo, a Liga dos Campeões e a Eurocopa – surgiram de cabeças francesas. O fato não deve ser ignorado e, por mais que possa existir muito de coincidência, ocorreu em parte por causa de fatores próprios do esporte francês.

O futebol começou a se estruturar nos países europeus na segunda metade do século XIX. Até a década de 1900, Inglaterra, Escócia, Irlanda (atual Irlanda do Norte), Gales, Dinamarca, Suíça, Holanda, Bélgica, Hungria, Romênia, Itália, Alemanha, Tchecoslováquia, Áustria, Noruega, Suécia, Finlândia e Luxemburgo já tinham federações nacionais. No entanto, a França não conseguia se inserir nesse meio devido a disputas internas.

No final do século XIX, os esportes mais populares do país ainda eram o rúgbi e o ciclismo. Para piorar, os franceses adeptos do futebol brigavam entre si. Foram criadas cinco entidades para regular o futebol gaulês. A mais importante, a USFSA (Union des Sociétés Françaises de Sports Athlétiques) tinha caráter poliesportivo, regulando não apenas o futebol, mas também rúgbi, hóquei sobre gelo, atletismo, esgrima, natação e ciclismo, entre outras modalidades. Uma espécie de CBD gaulesa.

O poder da USFSA sufocou as demais entidades que surgiram para o futebol francês, mas ela própria não fazia muito para desenvolver a modalidade. Partidária do amadorismo, a federação não simpatizava com o esporte que já se profissionalizara no Reino Unido e seguia pelo mesmo caminho na Europa Central. Além disso, o futebol era considerado muito “inglês” para os dirigentes da USFSA.

Mesmo assim, o crescente intercâmbio comercial e estudantil entre franceses e britânicos fez que o futebol ganhasse força na terra de Voltaire. A USFSA passou a organizar torneios, mas a modalidade estava desmobilizada e acabou centralizada em Paris nos primeiros anos. Foi quando Jules Rimet, presidente do Red Star, ganhou espaço como dirigente da USFSA.

Influenciado pelo sucesso do também francês Pierre de Fredy (o Barão de Coubertin) na recriação dos Jogos Olímpicos como grande evento esportivo internacional e ciente de como o futebol teria potencial para sair dos limites de cada país (uma necessidade francesa pela concorrência interna com outras modalidades), Rimet passou a propor a criação de um organismo que organizasse o esporte internacionalmente. O objetivo seria manter a uniformidade de regras e, claro, a realização de torneios entre equipes de nações diferentes.

A USFSA entrou em contato com federações nacionais de outros países e articulou a criação da Fifa. Mas não foi simples. Os franceses estavam tão determinados que aceitaram um embate direto com a Football Association (federação inglesa) em relação ao trabalho da entidade. Em princípio, a Fifa era contra o profissionalismo (orientação clara da USFSA) e defendia que cada país tivesse apenas uma federação, exigindo que ingleses, escoceses, irlandeses e galeses se juntassem futebolisticamente.

Os gauleses conseguiram fundar a Fifa ao lado de holandeses, belgas, dinamarqueses, suecos, suíços e espanhóis, mais viram os britânicos desdenharem da empreitada. De qualquer forma, foi dado o passo inicial para a criação da Copa do Mundo, em boa parte devido ao esforço dos franceses. Algo notável em um país em que o futebol mal conseguia vencer a concorrência de rúgbi e ciclismo.

A falta de sucesso da seleção francesa em Copas do Mundo não inibiu os gauleses a tentar internacionalizar o esporte. Havia uma demanda por mais competições entre países, mas era algo mal dimensionado e feito esporadicamente, sobretudo em amistosos ou em eventos intermitentes ou de âmbito puramente regional e/ou étnico (como o Torneio Internacional/Campeonato Britânico, a Copa Nórdica e a Copa Báltica).

Havia poucas exceções. A mais notável era a Copa América, mas era algo distante da realidade européia. Os outros dois casos era a Copa Mitropa e o Campeonato Centro Europeu (também conhecido como Copa Dr. Gerö). Essas duas competições foram criadas na década de 1920 pelo austríaco Hugo Meisl (o mesmo que treino o wunderteam da Áustria no início dos anos 1930) e tinham como méritos reunir as principais potências da Europa continental da época – as nações da Europa Central – e de ter alguma continuidade.

A Copa Mitropa e o Campeonato Centro Europeu deixaram no ar a idéia de reunir toda a Europa em competições de clubes e seleções. Algo que parecia óbvio, mas era necessário iniciativa. O que veio de dois franceses.

Depois de o Wolverhampton Wanderers, da Inglaterra, vencer amistosos contra os húngaros do Honved e os soviéticos do Spartak Moscou em 1954, o jornal inglês Daily Mail chamou os wolves de “campeões do mundo”. A falta de algo que parametrizasse tal título despertou um grupo de jornalista na redação do jornal francês L’Équipe.

Liderado pelo editor Gabriel Hanot, o periódico passou a publicar uma série de artigos e reportagens defendendo a criação de um campeonato de clubes europeus. O jornal desenvolve um ante-projeto para a competição e convida os campeões nacionais de diversos países. Muitos confirmam as presenças o L’Équipe dá início à organização da Copa dos Campeões da Europa.

Em fevereiro de 1955, poucos meses antes do início previsto do torneio, a Fifa – temendo as conseqüências de iniciativas independentes da estrutura oficial do futebol – avisou que o jornal não tinha competência e legitimidade para organizar uma competição internacional. Para que a Copa dos Campeões se tornasse realidade, foi necessário recorrer à Uefa, que fora fundada em 1954 e ainda não estava completamente organizada e consolidada internamente.

A Inglaterra não mandou representante por considerar que o Chelsea (campeão na temporada anterior) devesse se preocupar mais com o Campeonato Inglês. Mesmo assim, o torneio foi realizado e teve tamanho sucesso que nunca foi interrompido. Hoje, a idéia de um grupo de jornalistas franceses se transformou no maior torneio de clubes do mundo.

Nessa época, já haviam sido criadas as bases para o surgimento de outra competição de grande porte. Henri Delaunay, presidente da FFF (federação francesa, entidade que dirigiu a modalidade na França depois do fechamento da USFSA durante a Primeira Guerra Mundial), imaginava a disputa de um torneio entre seleções européias desde antes da criação da Copa dos Campeões. No entanto, não havia condições para a realização do torneio por falta de datas e de mobilização dos países.

Com o surgimento da Uefa e de um torneio oficial entre clubes, a idéia ganhou força. Mesmo assim, não foi fácil viabilizar o torneio. Várias federações importantes – como Alemanha Ocidental, Inglaterra, Itália, Suécia e Escócia – consideraram a idéia pouco promissora e não aceitaram o convite. Ainda assim, os entusiastas da Copa das Nações Européias (conhecida no Brasil como Eurocopa) conseguiram a inscrição de 17 países, um a mais do mínimo exigido pela Uefa.

Delaunay faleceu em 1955 e nunca viu sua proposta ganhar forma. Mesmo assim, sua importância foi é reconhecida. As finais da primeira Eurocopa, em 1960, foram realizadas na França como homenagem ao país que idealizara o torneio. Além disso, o troféu colocado em disputa leva, até hoje, o nome de Henri Delaunay.

Claro que esse pioneirismo francês foi facilitado pela soberba dos britânicos em relação ao futebol do resto do mundo e as dificuldades políticas enfrentadas por Alemanha e Europa Oriental na primeira metade do século XX. Mesmo assim, não se pode ignorar a mentalidade mais aberta e empreendedora de pessoas ligadas ao esporte gaulês. Até porque algum mérito a nação de onde vieram os criadores dos Jogos Olímpicos modernos, da Copa do Mundo, da Liga dos Campeões e da Eurocopa deve ter.

Ubiratan Leal

Imagens: Expert Football (Rimet), RAI (Hanot), Panorama Cutural (Delaunay), Fifa (R. Saint-Honoré e reunião 1913), Forum Bar du Foot (L'Équipe) e El Mundo (Euro 2004)

Obs.: as fotos na abertura do artigo são de, da esquerda para a direita, Rimet, Hanot e Dalaunay. O prédio parisiense que aparece é o local onde foi realizada a reunião que decidiu a fundação da Fifa

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3 comentários:

Anônimo disse...

Ubiratan, considerando-se essa rixa de franceses e ingleses, por que o clube que Jules Rimet presidia chama-se Red Star?

Ubiratan Leal disse...

Bem, Claudio, existe rixa entre franceses e ingleses, mas isso não significa que não existam pessoas que gostem ou aceitem o vizinho de Canal da Mancha.

Anônimo disse...

É, tem razão. Ainda nesse âmbito, outra pergunta: durante a guerra das Malvinas, houve algum movimento para que os clubes de nomes ingleses da Argentina (River Plate, Newell´s Old Boys, bom, quase todos...) mudassem de nome, assim como os Palestras Itálias brasileiros?