terça-feira, janeiro 24, 2006

E se a primeira bola de futebol tivesse furado?

O marco zero do nosso futebol está atrelado a seu objeto fundamental, a bola. Diferente do passado, hoje qualquer fábrica produz um balão de látex com gomos de napa ao redor, digna de uns 3 ou 4 rachões. Mas o material do passado tinha outra qualidade, sem qualquer inovação como Dry Fit ou efeito da Teamgeist. Para o pontapé inicial do esporte, com o perdão do trocadilho, bastava uma boa redondinha de couro que rolasse pelo gramado.

Charles Miller, arauto do esporte nas nossas terras, fez pompa para a primeira partida. Em um campo na Várzea do Carmo, centro da capital paulista, a Companhia de Gás esperava para derrotar a São Paulo Railway. Como qualquer evento novo em uma cidade que despontava mais e mais para o progresso industrial, eventos esportivos e de esforço físico atraíam uma certa atenção. Empilhados em caixas e escorados em muros, trabalhadores comuns e escravos libertos há poucos anos tentavam entender as regras do jogo.

Liderado por Charles Miller, a São Paulo Railway dominava a peleja. Após um chute forte, a pelota chocou-se direto com uma madeira do muro que delimitava o campo, provocando leves escoriações no esférico. Ainda assim, o prélio teve continuidade.

O time da Cia. de Gás parecia atropelado por uma locomotiva inglesa das mais ferozes, pois perdia por 4 x 2. Nervoso, um forward do team da empresa energética pensou: “faço tudo, mas não vamos perder a primeira!”. Seu ímpeto foi tanto que os sapatos, na verdade botas usadas nas inspeções das instalações, acabavam por ferir o revestimento da bola a cada passe ou chute mais forte.

Mas um lance mudou toda a história do jogo. O terreno não era muito plano e uma indústria que trabalhava com látex vindo do Amazonas despejava destroços do maquinário no local. Uma engrenagem parecida com uma roseta não ficou totalmente coberta e terminou a tarde como assassina de um esporte. O forward tentou a primeira jogada de linha de fundo do football brasileiro pelo lado esquerdo, mas não teve sucesso. A bola estourou ao ficar cravada em uma das pontas do metal, furando seu já calejado revestimento. No lance, o brasileiro ainda tropeçou, caindo direto com o nariz no chão. Ao ver aquela cena, um insucesso em forma de match, os players abandonaram o local rápido rumo ao hospital, abandonando o objeto outrora incensado por todos.

Bento, um operário da “Bhorracharia Amazonaz”, ficou intrigado com aquele abandono. Desceu do caixote e tentou alguns chutes, sem sucesso. Mal pensou em jogar fora e percebeu uma lata de lixo. Chamou a atenção dos amigos e disse que acertaria a bola no cesto, cerca de 4 m longe da sua posição. O trio sentado no muro duvidou e disse que pagaria um doce café se ele encaixasse a murchinha com o seu arremesso.

Em uma flexão de braços, com a força adquirida nos anos difíceis do refino de cana, Bento acertou na borda da lata, deixando o pedaço de couro morto no lixo. Eis que Joseph, o patrão da fábrica que observava todo o jogo do seu escritório, pensou em testar uma nova linha de produtos, bolas de borracha. Com uma visão de negócios rara para a época, passou a testar os projetos com os seus funcionários. Um detalhe chamou a atenção dos funcionários: quem mais acertasse a lata em 20 minutos levaria um exemplar do produto para a casa.

Alguns pares de meses passaram e não haviam regras definidas, mas nos cortiços da capital era comum encontrar meninos derrubando lixos ao passo que criavam um novo esporte, o “bola ao latão”, ou simplesmente “latão”. Mas, em um desses pequenos fatos que alteram o curso da história, algumas senhoras ergueram os cestos. A dificuldade logo virou norma e os postes passaram a balizar o campo, que antes era delimitado pelos recipientes no solo.

Oriundo das ruas, em 20 anos, o bola ao latão já era praticado no Rio de Janeiro e Minas Geraes, crescendo para o Nordeste e o Sul. Como o esporte enfatizava a força física e uma boa mira, acabou sufocando outras modalidades novas. O football de fato só apareceu no Brasil em 1917, em um match feito por Marcelo Nunes, um jovem luso, e Johann Sepp, alemão que tinha rotas comerciais com aquele porto do sul. O país só participou da Copa de 1930 porque era vizinho do Uruguai, mas isso não evitou um 8° lugar.

De volta ao latão, o esporte foi motivo de um incidente diplomático. Nascido em 1890, o basketball dos norte-americanos encontrou seu rival na América do Sul. Em tempos de guerra contra os nazistas, a Disney integrou as Américas com o desenho “Alô, Amigos”. Nele, Carmem Miranda era a torcedora de um jogo entre o Pato Donald e Zé Carioca. No roteiro original, o jogo seria nas regras do basketball, com vitória para os gringos. Reza a lenda que, ao ver a obra pronta, membros do governo Vargas reclamaram e quase que o desenho não foi aos cinemas. No final da história, Panchito, o mexicano, define regras comuns e o jogo termina com vitória norte-americana, mas Zé Carioca ganha um beijo da atriz luso-brasileira que compensa a derrota.

Nas décadas seguintes, a rivalidade só aumentou. Se argentinos, italianos e alemães brigavam no futebol – um esporte que o Brasil apenas beliscou um quarto lugar na Copa da Alemanha, em 1974 –, nossos rivais eram outros. O mundo viu nascer um Triângulo das Bermudas esportivo na década de 1980, com disputas afiadas em Mundiais de basquete e Olimpíadas entre Brasil, Estados Unidos e União Soviética.

O Brasil adaptara as regras do latão ao basquete, mas manteve o nome do jogo original e desenvolveu um estilo de jogo descontraído e de habilidade, criado nos becos das grandes cidades brasileiras. O que os brasileiros chamavam de latão-arte era conhecido nos Estados Unidos como “streetball”. Apesar do talento, os canarinhos não conheciam o sabor do ouro olímpico, o principal título.

Nomes como Bernardo, o Doutor Édson (famoso por dizer que entendia mesmo do esporte) e Sabiá foram decisivos em torneios, com o auge nas Olimpíadas de 1988. Depois de dois Jogos com boicotes, em 1980 e 84, Seul foi palco de uma competição acirrada. Carlos André e Carlos Caetano, alas gaúchos, lideraram o Brasil naquele ano.O país trocou o fuso para ver a dupla encestar adversários. A final contra os soviéticos provocou duas mortes por enfarte, pois um torcedor de Diadema e outro de Maceió não suportaram a tensão do jogo. Sabonis, cestinha lituano, parecia conhecer Pietro, pivô de 1,99 m, desde o útero. Mas a garra brasileira virou o placar para 101 a 100 no limite, 1 segundo antes do apito final.

Em 1992, seria o grande encontro Norte x Sul das Américas. Os Jogos Olímpicos de Barcelona deixariam de lado o atletismo e a natação para acompanhar o grande duelo do latão. Com a permissão de atletas profissionais, os craques da NBA poderiam enfrentar os melhores da LBL (liga brasileira de latão). Assim, em um único ginásio, estariam Michael Jordan, Magic Johnson, Larry Bird, Charles Barkley, Oscar Mão-Santa, Raí Vieira, Rafinha e Bauruzinho.

Para apimentar o jogo, a rede de televisão ESPN exibiu uma matéria sobre a origem do Harlem Globetrotters, indicando que muito do estilo moleque do Brasil seria derivado dos ianques. No dia da final, o técnico Ary Zagal mudou a sua tradicional preleção de outros jogos. Depois de lembrar que “medalha de ouro” tem 13 letras e brigar até conseguir um vídeo NTSC em plena terra do Pal, o treinador não disse nada, só exibiu a matéria e, no final, mostrou fotos de Santos Dumont, Secos e Molhados e Os Mutantes, brasileiros que foram pioneiros mas a história riscou seu livro com cores norte-americanas.

A audiência da TV foi incrível naquele sábado pela manhã. Supermercados fecharam, enfim, os hábitos de sábado mudaram naquele dia. Para completar a festa, a Rede Globo colocou uma câmera ao vivo na casa de Bauruzinho. A sua mãe, dona de um trailer em Nova Iguaçu, disse que quebraria um prato a cada cesta do seu garoto.

O jogo começou nervoso, nervoso. O Brasil entrou em campo com muita vontade e gana, o que acabou deixando o time afoito. Tal qual o jovem tenista Pete Sampras, os gringos eram icemen na quadra. O placar dilatado do começo, 10 x 2, foi contido com uma seqüência de tocos de Rafinha. Em uma vibração contagiante no terceiro toco, acordou o time. A torcida entendeu o recado e começou a bater em ritmo de samba, como se uma ala inteira de ritmistas fizesse um carnaval na Catalunya.

E Bauruzinho começou o prejuízo mais famoso do famoso X-Guaçu. Apenas no primeiro tempo, marcou 23 pontos. Charles Barkley foi advertido com seriedade aos 17 minutos, pois abandonou a bola para empurrar o brasileiro para o chão. A torcida rugia como um Godzilla e conseguia provocar mais e mais. Apesar da forte pegada dos latinos, o talento – e sorte – de Larry Bird construiu um placar de 45 x 43 para a águia no intervalo.

Mas um detalhe marcou aquela “intermission”. O pivô Rafinha não deixava a quadra, apenas pulava e pulava como se fosse um atleta do salto em distância. A equipe médica e até alguns repórteres tiveram de tirar o atleta do peculiar treino antes que ele acabasse machucado.

Na volta da partida, Michael Jordan soube do fato. E o americano, em uma risada no melhor estilo Pernalonga, apenas deu um passo grande na frente das câmeras. “They had Johnny Jump, right? Payback time, heh”.

Até o jovem Marcelo Negrão, que despontava no futebol, estava na torcida, que não parou de gritar desde que o juiz reiniciou o jogo. A partida contava com uma troca liderança no placar inusitada, pois Rafinha e Jordan duelavam para ver quem pulava mais longe e acertava a cesta. A “competição” era motivo de brilho nos olhos daquelas testemunhas até que Jordan tentou pular da linha do arremesso e errou. Rafinha não conseguiu conter a provocação e passou a sambar com a bola nas mãos, tratando da redonda como se fosse um pandeiro. A tradicional bandeja virou pandeiro naquele dia, pois o pivô conseguia dar uma batida com uma das mãos na bola antes de arremessar, como se estivesse tocando um samba. A agitação compensou a redução no pique de jogo de Bauruzinho, que sentia as dores do empurrão de Barkley.

Mas o cardeal americano Bird fez um estranho pedido para o técnico Chuck Daly enquanto a organização limpava o mar de suor que estava a quadra. Em uma jogada arriscada, os americanos teriam Scottie Pippen de um lado e o mago loiro no outro. A aposta deu certo e a diferença de 9 pontos virou em minutos. A 3 minutos do fim, com um placar de 93 x 90, Zagal arriscou e mandou Bauruzinho de volta para a quadra. Era o tudo ou nada.

E foi o tudo do Brasil. A torcida passou a bater no ritmo do samba-enredo vencedor de 1990, Vira-Virou, a Mocidade Chegou. E o ritmo entrou na quadra, com uma seqüência de jogada que parecia uma batida. Rafinha dava o toco nos gringos, passava a bola para Mauro Poste e este observava. Ou ia pelos flancos com Mão Santa e seus três pontos ou deixava que Bauruzinho rugisse com tudo, colocando a bola na cesta com força. Os gringos ainda tentaram, mas o placar de 97 x 95 foi coroado com uma sambada de Rafinha. A cena deu origem a uma das mais famosas campanhas dos tênis Nike, com um ícone feito da silhueta de um jogador sambando a bola.

Quando o jogo terminou, os americanos não acreditavam na cena. Barkley saiu logo para o vestiário, chutando as placas, enquanto Bird e Jordan tentavam consolar o perplexo Magic Johnson, uma estrela sem brilho naquela noite. Já os brasileiros vibravam juntos, quebravam protocolos e iam até a torcida comemorar. Em uma cena digna das enciclopédias dos jogos, Rafinha e Bauruzinho arrancaram duas cestas de lixo da quadra e prenderam nas tabelas. A medalha foi mera lembrança, pois aquele fato atestou que seja latão ou basquete, o Brasil é o melhor na arte de jogar a borracha até o cesto. Tudo porque, um dia, uma bola teria furado.

André Pase

Obs.: Esse “artigo” é uma obra de ficção e, portanto, não deve ser levado a sério. Nenhuma das pessoas, empresas, entidades ou associações citadas no texto foi efetivamente entrevistada ou consultada. Ah, e como ninguém aqui tem talento para ler mãos, i-ching, tarô, búzios, mapa astral ou bola de cristal, qualquer semelhança com a vida real foi uma grande coincidência.

4 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom! Excelente!
Já acompanho o balípodo há alguns meses e sempre achei (quase) todos os textos daqui os melhores da internet, principalmente os da sessão "e se...". Mas nesse vocês se superaram. É simplesmente o melhor texto de realidade alternativa (e se/what if) que eu já vi na vida.
Parabéns!

Anônimo disse...

fiquei com frio na espinha. Ainda bem que a bola não furou.

Anônimo disse...

Muito bom!
Meu amigo Pase que escrevinhou!

Anônimo disse...

Boa Lobo!
Fiquei arrepiado com a narrativa.
Abração,
JHS